Imprevidência: Os equívocos da matéria do jornal Valor Econômico sobre fundos de pensão

No dia 4 de novembro, o jornal Valor Econômico fez uma matéria sobre fundos de pensão que comete diversos equívocos. A reportagem trata da opção que os fundos de pensão estão oferecendo a participantes de planos de renda vitalícia de sacar todo o dinheiro dos benefícios de uma só vez.

Inicialmente, uma reportagem que trata de previdência complementar, e que tenta dar um caráter técnico e de isenção ao reproduzir declarações de profissionais especialistas do setor, erra ao ignorar os conceitos de seguro, atuária e mutualismo.

Seguro e ‘recapitalização’

Não se contrata um SEGURO, via uma seguradora (com o custo da taxa de administração correspondente), se se pode gerenciar sozinho (bancar a indenização) o risco do SINISTRO a ser indenizado. A contratação de uma seguradora acontece exatamente porque você precisa mitigar o seu risco compartilhando-o com mais indivíduos (mutualismo). A “RECAPITALIZAÇÃO”, neologismo utilizado na reportagem do Valor, nega esta necessidade.

Implicações do mutualismo

A citação de um evento “raro” de uma pessoa em estado terminal, já diagnosticada, rompe totalmente com o mutualismo e com os princípios previdenciários. Só para permitir uma comparação simples, seria como se uma pessoa contratasse um seguro para o seu carro sabendo que ele teria o seu carro roubado dentro de poucos dias. O mutualismo pressupõe que aquele que tem a infelicidade de morrer antes do tempo previsto atuarialmente deixaria reservas financeiras para cobrir aquele que excedeu a este tempo. Só que, a princípio, você não sabe a que “time” você pertence.

Se morrer, a família ganha…

Se todos os participantes de um plano de previdência de renda vitalícia souberem qual sua expectativa de vida, naturalmente aqueles que pertencem ao “time” dos que vão morrer cedo farão a “recapitalização” e, por consequência, aqueles do “time” dos que vão morrer tarde ficarão sem renda. Sinceramente, não existe violência social maior em uma sociedade considerada civilizada.

…se viver, todos perdem

Na previdência social (pública ou privada), o mutualismo, ou seja, o compartilhamento coletivo do risco inerente ao “viver”, é imprescindível. Sem ele, o cidadão, sozinho, não tem como enfrentar os sinistros naturais de sua vida, tais como o risco da invalidez deixá-lo incapacitado a produzir renda, o risco da perda temporária de renda no caso de doença, o risco da eventual morte prematura deixar seus dependentes vulneráveis, no caso da velhice sem renda, seja a sua velhice ou a de seu companheiro (a).

Pegando uma citação da matéria do Valor: “uma das vantagens para quem faz a recapitalização é transformar a renda de novo em patrimônio” (grifo nosso). Isto quer dizer que o patrimônio construído pelo participante e gerido por uma entidade de previdência não é mais patrimônio do participante? Ele só será patrimônio se retornar para uma conta individual do participante, mesmo que gerido pela mesma entidade?

Gráfico publicado na matéria do Valor Econômico faz simulações de acordo com as características dos participantes

Dever fiduciário

Também chama a atenção o fato de diretores de fundos de pensão, ouvidos pelo jornal Valor, estarem incentivando a retirada de recursos dos fundos de pensão, ou seja, estão colaborando com o fim desses planos. Isso vai de encontro com o princípio de proteger os planos, como prega a Previc.

O Guia Previc de “Melhores Práticas de Governança para Entidades Fechadas de Previdência Complementar” diz textualmente, em seu parágrafo 50, sobre Dever Fiduciário: “Os conselheiros e dirigentes devem proteger os direitos e interesses da EFPC e de seus participantes, empregando, no exercício da função, o cuidado e a diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração de seus próprios bens”.

Questões sem resposta

A partir da matéria do Valor, outras questões (além das que já fizemos) ficam sem resposta:

1 – O dinheiro retirado é suficiente para comprar um plano de renda vitalícia equivalente no mercado segurador?

2 – Pessoas mais idosas vão conseguir administrar com segurança os recursos num cenário de juros baixos, de modo a ter renda adequada até morrer? 

3) A matéria fala em deixar recursos de herança. Num cenário de longevidade, como ocorre atualmente, o que acontece se os recursos acabarem antes de a pessoa morrer?    A matéria não responde a nada disso. Fica o alerta para seletividade de situações aventadas pela reportagem do Valor que, nem de longe, discute todas as questões envolvidas quando tratamos de previdência.

Veja aqui a matéria do Valor: https://valor.globo.com/financas/noticia/2019/11/04/fundos-de-pensao-propoem-reversao-de-renda-vitalicia.ghtml